Curso Online de A Inquisição
Em uma época em que o poder religioso confundia-se com o poder real, o Papa Gregório IX, em 20 de abril de 1233 editou duas bulas que mar...
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A HISTÓRIA DA INQUISIÇÃO.
A Inquisição não foi criada de uma só vez, nem procedeu do mesmo modo no decorrer dos séculos. Por isto distinguem-se:
1) A lnquisição Medieval, voltada contra as heresias cátara e valdense nos séculos XII-XIII e contra falsos misticismos nos séculos XIV-XV;
2) A lnquisição Espanhola, instituída em 1.478 por iniciativa dos reis Fernando e Isabel; visando principalmente aos judeus e muçulmanos, tornou-se poderoso instrumento do absolutismo dos monarcas espanhóis até o século XIX, a ponto de quase não poder ser considerada instituição eclesiástica (não raro a lnquisição Espanhola procedeu independentemente de Roma, resistindo à intervenção da Santa Sé, porque o rei de Espanha a esta se opunha);
3) A lnquisição Romana (também dita Santo Ofício) instituída em 1.542 pelo Papa Paulo III, em vista do surto do protestantismo.
Apesar das modalidades próprias, a Inquisição Medieval e a Romana foram movidas por princípios e mentalidade características. Passamos a examinar essa mentalidade e os procedimentos de tal instituição, principalmente como nos são transmitidos por documentos medievais. -
Antecedentes da Inquisição contra os hereges a Igreja antiga aplicava penas espirituais, principalmente a excomunhão; não pensava em usar a força bruta. Quando, porém, o Imperador romano se tornou cristão, a situação dos hereges mudou. Sendo o Cristianismo religião de Estado, os Césares quiseram continuar a exercer para com este os direitos dos imperadores romanos (Pontífices maximi) em relação à religião pagã; quando arianos, perseguiam os católicos; quando católicos, perseguiam os hereges. A heresia era tida como um crime civil, e todo atentado contra a religião oficial como atentado contra a sociedade; não se deveria ser mais clemente para com um crime cometido contra a Majestade Divina do que para com os crimes de lesa-majestade humana.
As penas aplicadas, do século IV em diante, eram geralmente a proibição de fazer testamento, a confiscação dos bens, o exílio. A pena de morte foi infligida, pelo poder civil, aos maniqueus e aos donatistas; aliás, já Diocleciano em 300 parece ter decretado a pena de morte pelo fogo para os maniqueus, que eram contrários à matéria e aos bens materiais.
Agostinho, de início, rejeitava qualquer pena temporal para os hereges. Vendo, porém, os danos causados pelos donatistas (circumcelliones) propugnava os açoites e o exílio, não a tortura nem a pena de morte. Já que o Estado pune o adultério, argumentava, deve punir também a heresia, pois não é pecado mais leve a alma não conservar fidelidade (fides, fé) a Deus do que a mulher trair o marido (epist. 185, n. 21, a Bonifácio). Afirmava, porém, que os infiéis não devem ser obrigados a abraçar a fé, mas os hereges devem ser punidos e obrigados ao menos a ouvir a verdade. -
As sentenças dos Padres da lgreja sobre a pena de morte dos hereges variavam. São João Crisóstomo (- 407) Bispo de Constantinopla, baseando-se na parábola do joio e do trigo, considerava a execução de um herege como culpa gravíssima; não excluía, porém, medidas repressivas. A execução de Prisciliano, prescrita por Máximo Imperador em Tréviris (385) foi geralmente condenada pelos porta-vozes da lgreja, principalmente por São Martinho e Santo Ambrósio.
Das penas infligidas pelo Estado aos hereges não constava a prisão; esta parece ter tido origem nos mosteiros, donde foi transferida para a vida civil. Os reis merovíngios e carolíngios castigavam crimes eclesiásticos com penas civis assim como aplicavam penas eclesiásticas a crimes civis.
Chegamos assim ao fim do primeiro milênio. A Inquisição teria origem pouco depois.
As origens da lnquisição
No antigo Direito Romano, o juiz não empreendia a procura dos criminosos; só procedia ao julgamento depois que Ilhe fosse apresentada a denúncia. Até à Alta ldade Média, o mesmo se deu na Igreja; a autoridade eclesiástica não procedia contra os delitos se estes não Ihe fossem previamente apresentados. No decorrer dos tempos, porém, esta praxe mostrou-se insuficiente. Além disto, no séc. XI apareceu na Europa nova forma de delito religioso, isto é, uma heresia fanática e revolucionária, como não houvera até então: -
O catarismo (do grego katharós, puro) ou o movimento dos albigenses (de Albi, cidade da França meridional, onde os hereges tinham seu foco principal).
Considerando a matéria por si os cátaros rejeitavam não somente a face visível da lgreja, mas também instituições básicas da vida civil — o matrimônio, a autoridade governamental, o serviço militar — e enalteciam o suicídio. Destarte constituíam grave ameaça não somente para a fé cristã, mas também para a vida pública.
Em bandos fanáticos, às vezes apoiados por nobres senhores, os cátaros provocavam tumultos, ataques às igrejas etc., por todo o decorrer do séc. XI até 1.150 aproximadamente, na França, na Alemanha, nos Países-Baixos... O povo, com a sua espontaneidade, e a autoridade civil, se encarregavam de os reprimir com violência: Não raro o poder régio da França, por iniciativa própria e a contra-gosto dos bispos, condenou à morte pregadores albigenses, visto que solapavam os fundamentos da ordem constituída. -
Foi o que se deu, por exemplo, em Orleães (1.017) onde o Rei Roberto, informado de um surto de heresia na cidade, compareceu pessoalmente, procedeu ao exame dos hereges e os mandou lançar ao fogo; a causa da civilização e da ordem pública se identificava com a fé! Entrementes a autoridade eclesiástica limitava-se a impor penas espirituais (excomunhão, interdito, etc.) aos albigenses, pois até então nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido combatida por violência física; Santo Agostinho (- 430) e antigos bispos, São Bernardo (- 1.154), S. Norberto (- 1.134) e outros mestres medievais eram contrários ao uso da forma ("Sejam os hereges conquistados não pelas armas, mas pelos argumentos", admoestava São Bernardo, In Cant, serm. 64).
Não são casos isolados os seguintes:
Em 1.144 na cidade de Lião o povo quis punir violentamente um grupo de inovadores que aí se introduzira; o clero, pFoi o que se deu, por exemplo, em Orleães (1.017) onde o Rei Roberto, informado de um surto de heresia na cidade, compareceu pessoalmente, procedeu ao exame dos hereges e os mandou lançar ao fogo; a causa da civilização e da ordem pública se identificava com a fé! Entrementes a autoridade eclesiástica limitava-se a impor penas espirituais (excomunhão, interdito, etc.) aos albigenses, pois até então nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido combatida por violência física; Santo Agostinho (- 430) e antigos bispos, São Bernardo (- 1.154), S. Norberto (- 1.134) e outros mestres medievais eram contrários ao uso da forma -
("Sejam os hereges conquistados não pelas armas, mas pelos argumentos", admoestava São Bernardo, In Cant, serm. 64).
Não são casos isolados os seguintes:
Em 1.144 na cidade de Lião o povo quis punir violentamente um grupo de inovadores que aí se introduzira; o clero, porém, os salvou, desejando a sua conversão, e não a sua morte.
Em 1.077 um herege professou seus erros diante do bispo de Cambraia; a multidão de populares lançou-se então sobre ele, sem esperar o julgamento, encerrando-o numa cabana, à qual atearam o fogo!
Contudo, em meados do século XII, a aparente indiferença do clero se mostrou insustentável: Os magistrados e o povo exigiam colaboração mais direta na repressão do catarismo.
Muito significativo, por exemplo, é o episódio seguinte: O Papa Alexandre III, em 1.162, escreveu ao Arcebispo de Reims e ao Conde de Flândria, em cujo território os cátaros provocavam desordens: "Mais vale absolver culpados do que, por excessiva severidade, atacar a vida de inocentes... A mansidão mais convém aos homens da Igreja do que a dureza.. Não queiras ser justo demais (noli nimium esse iustus)." -
Informado desta admoestação pontifícia, o Rei Luís VII de França, irmão do referido arcebispo, enviou ao Papa um documento em que o descontentamento e o respeito se traduziam simultaneamente: "Que vossa prudência dê atenção toda particular a essa peste (a heresia) e a suprima antes que possa crescer.
Suplico-vos para bem da fé cristã, concedei todos os poderes neste Campo ao Arcebispo (do Reims) ele destruirá os que assim se insurgem contra Deus, sua justa severidade será louvada por todos aqueles que nesta terra são animados de verdadeira piedade. Se procederdes de outro modo, as queixas não se acalmarão facilmente e desencadeareis contra a Igreja Romana as violentas recriminações da opinião pública." (Martene, Amplissima Collectio II 638 s)
As conseqüências deste intercâmbio epistolar não se fizeram esperar muito: O Concílio Regional de Tours em 1.163, tomando medidas repressivas contra a heresia, mandava inquirir (procurar) os seus agrupamentos secretos. Por fim, a assembléia de Verona (Itália) à qual compareceram o Papa Lúcio III, o Imperador Frederico Barba-roxa, numerosos bispos, prelados e príncipes, baixou, em 1.184, um decreto de grande importância: O poder eclesiástico e o civil, que até então haviam agido independentemente um do outro (aquele impondo penas espirituais, este recorrendo à força física) deveriam combinar seus esforços em vista de mais eficientes resultados: Os hereges seriam doravante não somente punidos, mas também procurados (inquiridos); cada bispo inspecionaria, por si ou por pessoas de confiança uma ou duas vezes por ano, as paróquias suspeitas; os condes, barões e as demais autoridades civis os deveriam ajudar sob pena de perder seus cargos ou ver o interdito lançado sobre as suas terras; os hereges depreendidos ou abjurariam seus erros ou seriam entregues ao braço secular, que lhes imporia a sanção devida. -
Assim era instituída a chamada "Inquisição episcopal", a qual, como mostram os precedentes, atendia a necessidades reais e a clamores exigentes tanto dos monarcas e magistrados civis como do povo cristão; independentemente da autoridade da lgreja, já estava sendo praticada a repressão física das heresias. No decorrer do tempo, porém, percebeu-se que a inquisição episcopal ainda era insuficiente para deter os inovadores; alguns bispos, principalmente no sul da França, eram tolerantes; além disto, tinham seu raio de ação limitado às respectivas dioceses, o que lhes vedava uma campanha eficiente. À vista disto, os Papas, já em fins do século XII, começaram a nomear legados especiais, munidos de plenos poderes para proceder contra a heresia onde quer que fosse.
Destarte surgiu a "Inquisição Pontifícia" ou "legatina", que a princípio ainda funcionava ao lado da episcopal, aos poucos, porém, a tornou desnecessária. A Inquisição papal recebeu seu caráter definitivo e sua organização básica em 1.233, quando o Papa Gregório IX confiou aos dominicanos a missão de Inquisidores; havia doravante, para cada nação ou distrito inquisitorial, um Inquisidor-Mor, que trabalharia com a assistência de numerosos oficiais subalternos (consultores, jurados, notários...) em geral independentemente do bispo em cuja diocese estivesse instalado. As normas do procedimento inquisitorial foram sendo sucessivamente ditadas por Bulas pontifícias e decisões de Concílios. -
Entrementes a autoridade civil continuava a agir, com zelo surpreendente contra os sectários. Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador Frederico II, um dos mais perigosos adversários que o Papado teve no séc. XIII. Em 1.220 este monarca exigiu de todos os oficiais de seu governo prometessem expulsar de suas terras os hereges reconhecidos pela lgreja; declarou a heresia crime de lesa-majestade, sujeito à pena de morte e mandou dar busca aos hereges. Em 1.224 publicou decreto mais severo do que qualquer das leis citadas pelos reis ou Papas anteriores: As autoridades civis da Lombardia deveriam não somente enviar ao fogo quem tivesse sido comprovado herege pelo bispo, mas ainda cortar a língua aos sectários a quem, por razões particulares, se houvesse conservado a vida. E possível que Frederico II visasse a interesses próprios na campanha contra a heresia; os bens confiscados redundariam em proveito da coroa.
Não menos típica é a atitude de Henrique II, rei da Inglaterra: Tendo entrado em luta contra o arcebispo Tomás Becket, primaz de Cantuária, e o Papa Alexandre III, foi excomungado. Não obstante, mostrou-se um dos mais ardorosos repressores da heresia no seu reino: Em 1185, por exemplo, alguns hereges da Flândria tendo-se refugiado na Inglaterra, o monarca mandou prendê-los, marcá-los com ferro em brasa na testa e expô-los, assim desfigurados, ao povo; além disto, proibiu aos seus súditos lhes dessem asilo ou Ihes prestassem o mínimo serviço. -
Estes dois episódios, que não são únicos no seu gênero, bem mostram que o proceder violento contra os hereges, longe de ter sido sempre inspirado pela suprema autoridade da Igreja, foi não raro desencadeado independentemente desta, por poderes que estavam em conflito com a própria lgreja. A inquisição, em toda a sua história, se ressentiu dessa usurpação de direitos ou da demasiada ingerência das autoridades civis em questões que dependem primeiramente do foro eclesiástico.
Em síntese, pode-se dizer o seguinte:
1) A Igreja, nos seus onze primeiros séculos, não aplicava penas temporais aos hereges, mas recorria às espirituais (excomunhão, interdito, suspensão ...). Somente no século XII passou a submeter os hereges a punições corporais. E por quê? -
2) As heresias que surgiram-no século XI (as dos cátaros e valdenses), deixavam de ser problemas de escola ou academia, para ser movimentos sociais anarquistas, que contrariavam a ordem vigente e convulsionavam as massas com incursões e saques. Assim tornavam-se um perigo público.
3) O Cristianismo era patrimônio da sociedade, à semelhança da prática e da família hoje. Aparecia como o vínculo necessário entre os cidadãos ou o grande bem dos povos; por conseguinte, as heresias, especialmente as turbulentas, eram tidas como crimes sociais de excepcional gravidade.
4) Não é, pois, de estranhar que as duas autoridades - a civil e a eclesiástica tenham finalmente entrado em acordo para aplicar aos hereges as penas reservadas pela legislação da época aos grandes delitos.
5) A lgreja foi levada a isto, deixando sua antiga posição, pela insistência que sobre ela exerceram não somente monarcas hostis, como Henrique II da Inglaterra e Frederico Barba-roxa da Alemanha, mas também reis piedosos e fiéis ao Papa, como Luís VII da França.
6) De resto, a Inquisição foi praticada pela autoridade civil mesmo antes de estar regulamentada por disposições eclesiásticas. Muitas vezes o poder civil se sobrepôs ao eclesiástico na procura de seus adversários políticos.
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