Curso Online de Classes e movimentos sociais

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Neste curso são encontradas as principais categorias explicativas e alguns dos principais autores (clássicos e contemporâneos) que contribuem para o entendimento do debate das lutas de classe e sua relação com a constituição dos movimentos sociais no Brasil e na América Latina.

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  • Classes e movimentos sociais

  • A construção sócio-histórica dos movimentos sociais

    A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 9

    1
    Este capítulo reserva a você a oportunidade de compreender os movimentos sociais e sua importância diante da criação e or- ganização da vida em sociedade. Para tal, apresenta fatos e fenô- menos sociais, históricos, econômicos, culturais e territoriais, bem como conceitos e categorias explicativas que ajudarão no entendi- mento amplo acerca dos movimentos sociais e de sua construção sócio-histórica.
    Na mesma direção, oferece elementos que contribuirão para a desconstrução de concepções equivocadas que, porventura, tenham como base informações simplistas ou naturalizadas. Isso não quer dizer que somente com este capítulo você será capaz de atingir um aprofundamento pleno sobre a temática, afinal, aden- trar a história da Constituição e da práxis dos movimentos sociais também envolve submergir na história da construção social das sociedades em geral.
    O capítulo enfatiza, assim, a importância da emergência e da permanência dos movimentos sociais com relação à organização das sociedades como conhecemos hoje. Enfatiza, também, a im- prescindível atuação desses movimentos na criação e no exercí- cio da cidadania, da democracia e da efetivação do usufruto dos direitos constitucionais. Trata-se de uma introdução aos marcos interpretativos que possibilitam, de algum modo, instituirmos a atribuição de sentido e significado aos movimentos sociais.

  • 1.1 O que são movimentos sociais

    10 Classes e movimentos sociais
    Vídeo
    O entendimento do conceito de movimento social pode ser bastante complexo. Primeiramente porque nenhum conhecimento de mundo é neutro, ou seja, diferentes tipos de vivência geram diferentes interes- ses e, portanto, diferentes olhares sobre o mundo e as coisas que o compõem. Em outras palavras, cada compreensão acerca do que são movimentos sociais resulta em variadas conceituações, intrinsecamen- te relacionadas ao lugar de fala de quem as constrói (origem, cultura, status social, motivações).
    Há também que se avaliar que essas conceituações existem em dis- tintos campos de estudo, e nenhum deles está livre da disseminação de informações simplistas ou naturalizadas. Isso se complexifica ainda mais na contemporaneidade, dada a velocidade com que as informa- ções são criadas, compartilhadas e destituídas ou substituídas (estrate- gicamente ou não).
    Outro fator importante diz respeito ao abraçamento tardio do as- sunto pelo universo acadêmico, o que significa que o estudo e a concei- tuação acerca dos movimentos sociais ainda são muito recentes e, de certo modo, reduzidos se comparados a outros conhecimentos sociais. Se também considerarmos que a ciência tradicional ainda caminha a passos lentos, no que se refere ao intuito de valorar e proporcionar lugar de voz ao conhecimento empírico 1 , podemos dizer que existe a possibilidade de que os conceitos criados até então sobre os movimen- tos sociais apresentem fragilidades.
    Os estudos dos movimentos sociais localizam-se majoritariamente no campo das ciências sociais, no qual é possível identificar diferentes posicionamentos. Podemos sinalizar como ponto nevrálgico do deba- te a origem dos movimentos sociais, dado que a sua demarcação exata depende do entendimento de cada autor.
    Caso considerássemos qualquer mobilização coletiva como um movi- mento social, seria possível demarcar esse surgimento nos primórdios da história. Um exemplo explícito são as lutas sociais que se desen- rolaram na Roma Antiga, entre a última década do século VI a.C. e o começo do século V a.C. Logo após a queda da Monarquia e a institui- ção da República, o povo romano se manifestou por meio de revoltas populares ao verificar que suas demandas não eram consideradas pelo novo Estado estabelecido (PLUTARCO, 1951).
    Faz referência ao conhecimento adquirido por meio da vivência e/ou da observação. Como se trata do conhecimento que oriunda da experiência humana, e não de experiências científicas comprovadas, é também denominado senso comum.
    1
    nevrálgico: em sentido figurado, quer dizer crucial; central; ponto mais importante de uma questão.
    Glossário

  • A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 11
    Essas mobilizações da plebe romana resultaram na criação do Tribu- no do Povo, um tipo de cargo estatal para garantir a representatividade dos plebeus. É uma das revoltas mais conhecidas na história da Roma Antiga, por se tratar de um marco na construção da cidadania romana.
    Nessa linha de análise, portanto, toda ação de um grupo organizado que objetiva alcançar mudanças sociais por meio do embate político é conceituado como movimento social. Com base nesse pressuposto, um movimento social teria como propósito uma ou mais alterações no modo como a sociedade institui algum processo. A ação social em si, nessa perspectiva, é considerada um movimento social, isto é, refere-
    -se ao modo como a sociedade se movimenta (toda mobilização, ação, batalha ou revolta organizada).
    Por outro viés de análise, manifestações, atos, protestos e marchas políticas configuram-se como ações sociais geradas por movimentos sociais. São estratégias criadas para expressar insatisfações, articular membros e dar visibilidade às pautas de luta. Podem ser compreendi- das como ações políticas que geram ou não o nascimento de movimen- tos sociais, bem como resultam ou não da organização deles. Assim, o movimento social seria o grupo organizado, e não a ação desenvolvida.
    Enfatizado que não existe uma única perspectiva sobre os movi- mentos sociais, que o desafio de determinar seu surgimento é perma- nente e que esse debate está longe de ser esgotado, cabe agora expor o que são movimentos sociais e como se organizam. Percorreremos, para tanto, uma leitura de mundo mediada pela teoria crítica da Escola de Frankfurt, mais precisamente sob os critérios analíticos do materia- lismo histórico-dialético de Karl Marx 2 .
    Nossas contribuições ao estudo de classes e movimentos sociais, desse modo, estarão em consonância com o método de investigação da vida proposto por Karl Marx, ou seja, com o entendimento da so- ciedade pela análise de sua totalidade, sem desconsiderar as particu- laridades que constituem o seu todo (elementos culturais, históricos, territoriais, políticos, econômicos e sociais). Considera-se que a vida é dinâmica, contraditória e em constante movimento, transformando-se e se materializando historicamente conforme os fenômenos sociais se relacionam com as forças sociais que os geram.
    Para exemplificar a questão, observemos as Mães da Sé, que reúnem mães de filhos desapa- recidos a manifestarem-se na Praça da Sé (São Paulo/SP) e em outros cantos do mundo. Elas buscam notícias sobre o para- deiro de seus filhos e reclamam contra a ineficiência do Estado diante do desaparecimento de crianças no Brasil. Contudo, ainda que as Mães da Sé estejam organizadas e institucionali- zadas por meio da Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças Desaparecidas (ABCD), não se configuram enquanto
    um movimento social, visto que não questionam a raiz da
    estrutura social imposta (papéis, posições, funções, instituições, organizações, sistemas etc.).
    Obtenha mais informações na página oficial, disponível em: http://www.maesdase.org.br/ Paginas/default.aspx. Acesso em: 22 jun. 2020.
    Curiosidade
    2
    Entende-se como materialismo histórico-dialético a teoria crítica criada por Karl Marx, que oferece um arcabouço capaz de
    proporcionar análises mais apro- fundadas e amplas acerca da realidade social. Essa teoria rom- pe com diversas outras, como a funcionalista e a positivista. Para Marx, as teorias existentes eram limitadas e equivocadas, visto que consideravam o mundo e o sistema social estático, fatalista e messiânico.

  • 12 Classes e movimentos sociais
    Consequentemente, temos como ponto de partida a compreensão dos movimentos sociais como coletivos de poucos ou muitos sujeitos que se aproximam e permanecem unidos por uma identidade social, questionam a estrutura social vigente, constroem projetos de socieda- de segundo o que acreditam ser mais justo. Coletivos que, por meio de ações sociais, se organizam para expressar na sociedade modos de ver o mundo e reivindicar politicamente respostas às demandas que lhes são pertencentes (majoritariamente, lutar por condições adequadas de vida).
    Movimentos sociais são ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demandas e criam um campo político de força social na sociedade civil. Suas ações es- truturam-se a partir de repertórios criados sobre temas e pro- blemas em situações de conflitos, litígios e disputas. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva ao movimento, a partir de interesses em comum. Essa identidade decorre da força do princípio da solida- riedade e é construída a partir da base referencial de valores cul- turais e políticos compartilhados pelo grupo. (GOHN, 2000, p. 13)
    Vemos na explicitação desse conceito, em linhas gerais, que um mo- vimento social é mais do que um ato organizado coletivamente. Sua complexidade se caracteriza por dimensões que norteiam embates po- líticos, valores, ideais, tensões sociais, construções identitárias, estraté- gias planejadas, um projeto societário, articulações em rede, inscrição na história e estruturas organizacionais (lideranças, comitês, brigadas, partidos e veículos de comunicação).
    São mais que uma simples revolta (as jacqueries camponesas), mais que um grupo de interesses (câmara de comércio), mais que uma iniciativa com autonomia do Estado (ONGs). Os movi- mentos nascem da percepção de objetivos como metas de ação, mas para existirem no tempo necessitam um processo de insti- tucionalização. (TOURAINE, 1999, p. 112)
    Dada a complexidade que constitui um movimento social, para compreendê-lo, é preciso verificar as estruturas sociais nas quais ele emerge, resiste e se manifesta. Dito de outro modo, toda sociedade funciona sob as rédeas de determinados grupos (elites econômicas e políticas), desenvolve-se tendo em vista contextos políticos, econômi- cos, históricos, culturais e territoriais bem específicos, além de se fun- damentar em valores e crenças diversas e estabelecer relações sociais constantemente tensionadas por disputas de classe.

  • 1.2 O sujeito político dos movimentos sociais

    A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 13
    Vídeo
    É um equívoco conceituar ou buscar compreender os movimentos sociais sem considerar que cada sociedade vivencia um tipo de moder- nidade, uma forma de governo e diferentes processos com relação à formação de sujeitos sociais. Isso nos remete ao fato de que a constitui- ção dos movimentos sociais também é demarcada por aspectos econô- micos, geográficos e territoriais.
    Nessa linha de análise, há uma categoria explicativa que merece atenção especial: a formação do sujeito político, o ser que constrói segundo vivências e conjunturas estruturais peculiares e encaminha a ação. Entendemos, então, que o sujeito da ação social se difere de acor- do com o meio e o território em que vive, as oportu-
    nidades de ação de seu tempo e suas experiências.
    A respeito da construção do sujeito político, nes- sa perspectiva, torna-se mais fácil a visualização das motivações que permeiam a criação dos movimen- tos sociais e, portanto, sua legitimidade. Assim se descortina a raiz dos movimentos sociais, que nas- cem do real vivido, sendo possível compreender o porquê de se comprovarem necessários.
    Para melhor explicitar a questão, tomemos o mo- vimento dos trabalhadores como exemplo em que esses elementos se mostram aparentes. O movi- mento do proletariado nasceu no século XIX devido às péssimas condições de trabalho e vidas imputa- das pelo sistema capitalista. A construção da luta contra a exploração dos trabalhadores emergiu da necessidade, visto que a pobreza extrema se alarga- va e, com ela, surgiam novas problemáticas sociais.
    Esse contexto se revela de modo drástico na maioria das sociedades, uma vez que o capitalismo se reconfigurou em meados do século XIX, passan- do de sua forma mercantilista originária (comercial) para um modelo mais elaborado, o sistema indus- trial. Se com a expansão marítima e colonial (prá- ticas que demarcaram os primórdios do sistema

    O capitalismo é um sistema econômico e social cuja ori- gem ocorreu sob a influência das ideias iluministas e liberalistas. É uma proposta de desenvolvimento da so- ciedade com base na ideia do fortalecimento das liberdades,
    principalmente quanto ao livre comércio com intervenção estatal mínima e à liberdade do estabelecimento da pro- priedade (da terra e de outros bens). O sistema instaura a divisão de classes (burguesia versus proletariado) entre os que detêm os meios para a produção e os que possuem apenas a força de trabalho para sua sobrevivência.
    Diferentemente de todos os regimes de governo e modos de economia anteriores, o ca- pitalismo instaura a exploração do homem pelo homem de maneiras complexas e contra- ditórias. Trata-se de um divisor temporal no que se refere às tipificações de modos de vida social, político, econômico e cultural.
    Saiba mais

  • 14 Classes e movimentos sociais
    capitalista) o mundo já sentiu o braço dos processos exploratórios, na sua segunda fase, o capitalismo instaurou níveis ainda mais complexos de exploração. Inaugurou-se a era da divisão internacional do trabalho, medida estratégica de alta exploração com os objetivos de reduzir in- vestimentos e ampliar ainda mais os lucros.
    O mundo foi dividido segundo as necessidades de empoderamento do sistema capitalista. De um lado, grandes metrópoles se ergueram e se instituíram enquanto produtoras de mercadorias em grande escala. Demarcou-se, então, o poderio das elites por sua propriedade dos meios de produção, assumindo o posto de centro do mundo. Do outro lado, houve o lugar de servidão dos países colonizados, campo de exploração de matérias-primas e de mão de obra (em maioria, quase escrava).
    As grandes metrópoles se anunciaram como modelos de desenvol- vimento para o mundo. O processo de produção industrial inviabilizou os tradicionais métodos de vida que a sociedade conhecia: a produção artesanal, já no início dessas mudanças, foi banida aos artesãos, só restou a oferta da mão de obra. A vida rural camponesa também foi inviabilizada, levando famílias inteiras para os grandes centros indus- triais em busca de alguma chance de emprego e salário. Culturas, há- bitos, tradições e símbolos foram drasticamente alterados, e a vida em sociedade nunca mais foi a mesma.
    Após a revolução tecnológica industrial, o capitalismo se tornou a única possibilidade de subsistência. As cidades industriais surgiram sem planejamento adequado e sem trabalho e emprego para a maio- ria. Houve, portanto, o acentuamento do pauperismo, da violência urbana, das periferias, do uso descontrolado de psicoativos, de destrui- ções de contextos familiares em massa e, entre outras consequências, da exacerbação dos mais severos níveis de desigualdade social.
    Em 1945, ao observar o trabalho fabril e a vida dos trabalhadores na Europa, Engels 3 registrou tempos de barbárie e extrema injustiça social. A maioria da população vivia em barracos improvisados ou em cortiços aglomerados, e o tempo de trabalho atingia mais de 17 horas por dia (crianças e mulheres grávidas trabalhavam na mesma medida). O salário mal cobria a despesa com alimentação, não havia qualquer subsídio fi- nanceiro ou serviço para atendimento da saúde dos trabalhadores, bem como qualquer tempo reservado para férias ou descanso. Metade das crianças morria antes dos cinco anos de idade (ENGELS, 2010).
    Sugerimos o filme Germinal, produzido pelo escritor Émile Zola, que proporciona a visualiza- ção dos níveis desuma- nos da exploração do sistema capitalista no período histórico do seu surgimento.
    Direção: Claude Berri. Bélgica, Itália, França: Renn Productions, 1993.
    Filme
    pauperismo: extrema pobreza; miséria; paupérie.
    Glossário
    Friedrich Engels assumiu, na In- glaterra, a direção de uma gran- de fábrica de sua família, onde pôde observar as mazelas sociais criadas pelo sistema capitalista. Conheceu os dois lados do capitalismo, primeiramente dado à sua origem social e, depois, por meio de suas vivências enquanto teórico e militante revolucio- nário. Após anos dedicados ao estudo minucioso da situação da classe trabalhadora na Inglaterra (título de uma de suas principais publicações), Engels concluiu que a história da humanidade é a história da luta de classes.
    3

  • A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 15
    Diante de processos exploradores e desumanos, os trabalhadores passaram a se construir enquanto sujeitos políticos. Nasceu, então, o movimento social dos trabalhadores proletariados, que passaram a se reconhecer enquanto classe antagônica à classe dos capitalistas (pela primeira vez na história, organizaram greves de dimensões considerá- veis). No mesmo período, conheceram os manuscritos de Karl Marx 4 , passaram a questionar o capitalismo e a denunciá-lo ao mundo como um sistema econômico que beneficia os proprietários dos meios de produção e que se sustenta da exploração dos trabalhadores.
    Na perspectiva de análise de autores da tradição marxista/marxia- na, teoria de influência hegemônica no Serviço Social, temos o sécu- lo XIX como o marco do surgimento do movimento social de classe (o mais próximo das organizações que conhecemos na atualidade). Com ele, ocorre o nascimento do sujeito social e político que se desenvolveu como ator social.
    Esse desenvolvimento pode ser identificado em importantes eta- pas, organizadas didaticamente a seguir:
    O sujeito da industrialização que construiu o movimento dos trabalhadores (que tem a disputa de classe no centro do
    processo) e que inspirou o nascimento de outros movimentos sociais.
    O sujeito consciente do seu processo de transformação
    e construção enquanto sujeito político e ator social.
    O sujeito, pós-sociedade industrializada, que vivenciou os movimentos sociais e fez nascer desse processo o sujeito coletivo transformador, iniciando o processo de criação dos movimentos sociais para além das lutas de classe.
    Karl Marx foi um militante formado em Sociologia, História, Economia e Jornalismo. Sua teoria, o materialismo histórico-
    -dialético, influenciou diversos campos da ciência. Ele se de- dicou a explicitar as estratégias capitalistas para proporcionar à classe trabalhadora acesso aos conhecimentos necessários à sua libertação dos processos de
    exploração e injustiça social. Pro- duziu livros, jornais e manifestos, como Manifesto Comunista (1848) e O Capital (1867-1894).
    Sacrificou sua condição social e econômica em busca de sua meta, foi exilado, perseguido e
    boicotado no campo da ciência e da política. Foi Marx, em suma, quem desvendou o capitalismo e o explicitou em suas mais diver- sas dimensões. Falou e instigou trabalhadores a se organizarem coletiva e internacionalmente, com o propósito de derrubar o sistema que os aprisionava na condição de explorados, aliena- dos e escravizados. Suas ideias foram expandidas tendo em vista diferentes interpretações, algumas equivocadas sobre
    sua obra.
    4

  • 16 Classes e movimentos sociais
    De acordo com Touraine (1994), o sujeito social histórico se constrói em meio e ao longo de processos sociais. Evitando ser somente deter- minado pelo contexto em que vive, é o sujeito que constrói a vontade de agir e alterar o seu meio social. É o ser social e político que constrói sua liberdade na relação com o outro e sob a promessa da democracia, que se torna atuante em seu mundo pessoal e social (ainda que inicial- mente esse processo ocorra de modo inconsciente).
    Uma sociedade democrática é uma sociedade que reconhece o outro, não na sua diferença, mas como sujeito, quer dizer, de modo a unir o universal e o particular [...], uma vez que o sujeito é ao mesmo tempo universalista e comunitário, e ser sujeito é estabelecer um elo entre esses dois universos, ensaiar viver o corpo e o espírito, emoção e razão. (TOURAINE, 1994, p. 1-2)
    Em suma, os movimentos sociais são legítimos e necessários, pois emergem e resistem na luta contra as desigualdades implementadas pela própria estrutura social. Os conflitos sociais se alteram segundo a influência dos fenômenos vivenciados em cada período, o que nos leva ao entendimento de que os movimentos sociais existem em todas as sociedades campo da produção, pautas culturais e, mais atualmente, nas questões identitárias.
    Como estudamos, há registros históricos de conflitos sociais que datam desde os primórdios da humanidade, mas foi na sociedade ca- pitalista que os sujeitos políticos configuraram os moldes institucionali- zados que caracterizam os movimentos sociais na atualidade.
    No contexto capitalista, os movimentos sociais asseguram possibi- lidades de resistência e luta aos grupos que historicamente são negli- genciados, excluídos ou invisibilizados devido à sua condição de classe, sua posição cultural ou sua condição identitária. A inexistência dos movimentos sociais seria extremamente benéfica ao ideário capitalis- ta, uma vez que não haveria grupos a denunciar as desumanidades e barbáries que caracterizam suas estratégias de perpetuação.
    A compreensão da ideologia capitalista, bem como das práticas so- ciais que a materializam, se faz essencial ao entendimento dos movi- mentos sociais, pois ainda que a desigualdade social seja anterior ao sistema capitalista e exista em toda parte do mundo (independente- mente do tipo de governo ou do sistema econômico em vigência), é na luta de classes que se apresentam os níveis mais complexos de contra- dição e injustiça social. Logo, o entendimento conceitual dos movimen-

  • A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 17
    tos sociais só é possível se considerados os conflitos de classe, ainda
    que estes não sejam o único determinante de sua existência.
    Desde a sua origem, portanto, o capitalismo altera muito mais do que a ordem econômica: ele institui novos valores e modos de ser em sociedade. No século XIV, um manual distribuído pelos burgueses aos comerciantes já demonstrava o que estava por vir: a projeção do des- prezo pelos pobres, a incitação ao egoísmo, o incentivo à corrupção, a elevação da propriedade privada ao sagrado e a supremacia da obten- ção de lucros. O manual orientava:
    não frequentes os pobres, pois nada tens a esperar deles; tu não deves servir os outros, deixando de te servir em teus pró- prios negócios; lembre-se que as dádivas tornam cegos os olhos dos sábios e muda a boca dos justos. Se para obter o resultado esperado da transação mercantil for preciso subornar, por que não fazê-lo? É um grande erro fazer o comércio de modo empírico, o comércio deve ser feito racionalmente. (RIBEIRO, 1995, p. 210, grifos do original)
    Ainda na contemporaneidade, vemos um grupo minoritário com- posto de elites econômicas e políticas que tem sob seu poder Estados, indústrias, empresas, bancos, veículos de comunicação em massa, grandes complexos industriais monopolizados e incontáveis proprie- dades de terra em todo o mundo.
    É inegável, então, a importância absoluta dos movimentos sociais, visto que ainda se configuram enquanto espaço de construção de su- jeitos políticos, que se expressam, organizam e instituem modos de en- frentamento das desigualdades e injustiças criadas ou intensificadas pelo sistema capitalista. São os movimentos sociais os porta-vozes dos sujeitos cujos direitos são negligenciados, reduzidos ou retirados.
    Os movimentos sociais proporcionam meios para que os sujeitos se aproximem, expressem suas demandas individuais e sociais, se identi- fiquem em suas vivências, compartilhem saberes e conhecimentos de todos os tipos, inclusive os políticos. Por meio da aproximação com os grupos organizados, são viabilizados o acesso a estudos, debates e outras vivências que resultam no entendimento dos sujeitos de sua própria condição de vida. Condição essa que nem sempre é escolhida, tendo em vista que, em prol da manutenção de sua ideologia burguesa, o sistema capitalista dificulta ou impede a ascensão social de pobres, mulheres, indígenas, negros, homossexuais, lésbicas, travestis, religio-

  • 18 Classes e movimentos sociais
    sos e de qualquer grupo que questione ou ameace o pleno funciona- mento da ordem capitalista.
    O movimento social é cenário e palco para o fortalecimento de re- lações de identidade, a descoberta do modo como as relações sociais são construídas e o entendimento da origem das formas sociais de ex- ploração e dominação política campo de extrema importância para que o sujeito possa tomar ciência de sua alienação. Importante res- saltar que a alienação é aqui compreendida como um dos pilares para a construção da ideologia burguesa, sendo a base que proporciona ao capitalismo as máximas necessárias à sua perpetuação.
    Quando o sujeito não percebe que sua vida e o funcionamento do sistema social em que vive são construídos em parte por ele próprio, por meio da reprodução das regras que regem a estrutura social, dize- mos que está na condição de alienado. Nessa situação de “ignorância”, não percebe, por exemplo, sua condição de explorado, elevando a res- ponsabilidade pela criação das sociedades e das suas próprias condi- ções de vida ao divino, ao Estado, ao destino, à ciência etc. Uma pessoa alienada que vive na condição de extrema pobreza, por exemplo, natu- raliza sua situação e, por isso, tende a não questioná-la.
    Como enfatizado, a compreensão teórica do que é um movimen- to social é uma tarefa complexa, pois mesmo entre teóricos não há um consenso quanto a uma conceituação. Ao considerar o fato de que adentramos em termos e conceitos equivocamente simplificados para uso no senso comum, a situação fica ainda mais difícil.
    1.3 Movimentos sociais na desconstrução
    da ideologia burguesa
    Vídeo
    Para além do impasse quanto à determinação do surgimento e do próprio conceito de movimentos sociais, e considerando os termos ne- vrálgicos já abordados (estrutura social, sujeito político, ação social, ca- pitais sociais, alienação, proletariado, burguesia, elites etc.), outro termo que exige atenção é ideologia, essencial à sequência dessa reflexão.
    Ideologia apresenta significados diversos e opostos. No senso co- mum, é utilizada como sinônimo de visão/ideia de mundo, implicando o entendimento de que existem diferentes ideologias segundo o que


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